D.
Orani João Tempesta
Cardeal
Arcebispo do Rio de Janeiro
O Evangelho, em Lc 10,38-42 do 16º Domingo do
tempo comum, apresenta Jesus a caminho de Jerusalém; em Betânia é recebido em
casa de Marta, irmã de Maria e Lázaro, por quem o Senhor havia chorado e a quem
havia ressuscitado. Na casa dos três irmãos, que Jesus amava de todo o coração,
Ele encontrou a acolhida e o repouso necessários para descansar, depois de uma
longa jornada. Eles são tidos como “hospedeiros do Senhor”.
Nesta semana em que muitos jovens estão se
deslocando para as Semanas Missionárias que precedem a JMJ Cracóvia 2016,
acolher a palavra de Deus, que nos fala de hospedagem e acolhimento da Palavra,
é um bálsamo para todos os peregrinos – para os que saem de suas casas para
irem em romaria, como para aqueles que ficam com o coração aberto à
participação, mesmo de longe desse evento que transforma corações.
A Palavra de Deus apresenta-nos, nas leituras
deste domingo, dois modos de acolher o Senhor; dois modos distintos, mas que se
relacionam e mutuamente se condicionam. O primeiro é acolhendo-O na sua
Palavra, como Maria, a irmã de Marta e de Lázaro. Para nós, ela é modelo do
discípulo perfeito, pois “sentou-se aos pés do Senhor, e escutava sua
palavra”. Marta também acolheu Jesus, mas como aqueles que são cristãos tão
empenhados em trabalhar por Cristo e em falar de Cristo, que pode ser que
muitas vezes se esquecem de estar com Cristo, de realmente dar-Lhe atenção na
escuta da Palavra e na oração. Ora, é nisto, precisamente, que Maria, hoje, é
exemplo para nós: “sentou-se aos pés do Senhor”. Dar tempo para escutar o
Senhor.
Santo Agostinho comenta esta cena da seguinte
maneira: “Marta ocupava-se em muitas coisas, dispondo e preparando a refeição
do Senhor. Pelo contrário, Maria preferiu alimentar-se do que dizia o Senhor.
Não reparou de certo modo na agitação contínua de sua irmã e sentou-se aos pés
de Jesus, sem fazer outra coisa senão escutar as Suas palavras. Tinha muito bem
compreendido o que diz o Salmo: “Descansai e vede que Eu sou o Senhor” (Sl 46,
11). Marta consumia-se, Maria alimentava-se; aquela abarcava muitas coisas,
esta só atendia a uma. Ambas as coisas são boas”.
Por séculos, quis-se apresentar Marta e Maria
como dois modelos de vida contrapostos: em Maria quis-se representar a
contemplação, a vida de união com Deus; em Marta, a vida ativa de trabalho.
Sabemos que foi uma interpretação forçada. À maioria dos cristãos, chamados a
santificar-se no meio do mundo, não se pode considerar como dois modos
contrapostos de viver o cristianismo, pois uma vida ativa que se esqueça da
união com Deus é algo inútil e estéril; uma suposta vida de oração que
prescinda da preocupação apostólica e da santificação das realidades ordinárias
também não pode agradar a Deus. A chave está, portanto, em saber unir estas
duas vidas, sem prejuízo nem de uma nem de outra. Esta união profunda entre
ação e contemplação pode-se viver de modos muito diversos, segundo a vocação
concreta que cada um recebe de Deus.
O trabalho, longe de ser obstáculo,
há de ser meio e ocasião de uma intimidade afetuosa com Nosso Senhor, que
é o mais importante. Ou seja, é no meio de nossos trabalhos
cotidianos, e através deles, não apesar deles, que Deus convida a maioria dos
cristãos a santificar o mundo e a santificação Nele, com uma vida transbordante
de oração que vivifique e dê sentido a essas tarefas.
Logicamente, Jesus quer que trabalhemos. Com
certeza o trabalho de Marta agradava o Senhor e, no entanto, ele a anima a dar
novas dimensões ao trabalho: além de bem-feito, que seja elevado pela graça de
Deus, transformado em oração e oferecido ao Senhor. Nós, que desejamos dar
testemunho de Cristo nas situações mais normais da jornada, não podemos fazer
as coisas de qualquer maneira. Um bom católico necessariamente se destaca por
ser um bom trabalhador. É impossível que a sua vida de relação com Deus não
redunde na sua vida de relação com os outros. Além do mais, procurará ser um
profissional de categoria: o melhor advogado, a melhor dona-de-casa, o melhor
médico, a melhor dançarina, o melhor estudante, o melhor agricultor etc.
Marta, ao acolher Jesus em sua casa, também
nos ensina que devemos abrir o coração para o próximo, todo próximo que se
aproxima de nós ou de quem nós nos aproximamos. É toda uma atitude de
acolhimento entre os esposos, entre pais e filhos, entre irmãos, entre os
vizinhos, no trabalho, em nossas comunidades paroquiais. Nestes tempos de tanto
fechamento ao outro, acolher Jesus em nossa casa tem como consequência saber
acolher o irmão que necessita de nossa atenção. Dessa maneira iremos fazer a
experiência de Abraão que, ao acolher, viu as promessas de Deus se realizarem
em sua futura descendência (Gn 18, 1-10). Eis as promessas cumpridas e
reveladas em Jesus Cristo para a todos tornar perfeitos em sua união com Cristo
(Cl 1, 24-28).
Que a fraterna solidariedade nos ajude a
transformar, pela graça de Deus, esse mundo que se fecha ao outro e tem medo do
outro. Serão essas experiências que irão, pouco a pouco, transformando a nossa
sociedade egoísta. Que a palavra de Deus deste domingo coloque os cristãos a
caminho de serem o lugar onde Jesus Cristo está presente, e que, ao escutá-Lo,
contemplemos o rosto misericordioso de Deus e, consequentemente, anunciemos a
misericórdia aos nossos irmãos e irmãs.
Fonte:
http://arqrio.org/formacao/detalhes/1333/acolher-cristo-no-outro