D.
Orani João Tempesta
Cardeal
Arcebispo do Rio de Janeiro
Os projetos de leis, os decretos do executivo
e julgamentos do judiciário ultimamente têm seguido alguns caminhos ditados por
uma mentalidade global que procura desconstruir a família como sonhada no sábio
projeto de Deus para a humanidade.
Diante dessas tentativas, convém refletirmos
um pouco sobre a estrutura e finalidade da família à luz dos importantes
ensinamentos da Santa Igreja. Afinal, para ela se voltam os olhares não só dos
católicos, mas também de parte das mídias mundiais e de especialistas por ocasião
da última semana do Sínodo Ordinário das Famílias, convocado pelo Papa
Francisco.
Podemos, com a Palavra de Deus que é uma só,
mas a nós transmitida por dois canais: a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura
tuteladas pelo Magistério da Igreja, seu guardião, bem como de bons teólogos e
textos já trabalhados por outros defensores da família, expor alguns pontos
fundamentais em defesa da família no projeto de Deus nos nossos dias.
Começamos, dizendo – seguindo o raciocínio de
Dom Estêvão Bettencourt, OSB – que ela é uma instituição natural, núcleo da
sociedade dos homens e mulheres. É na família que o indivíduo é ‘gente’ ou
reconhecido como pessoa humana com o carinho que ele merece, ao passo que fora
de casa o indivíduo muitas vezes é um mero número, impessoal e não raramente
incômodo.
Daí se segue que, de acordo com a Lei
Natural, a família tem seu fundamento na complementação física e psíquica que
homem e mulher – e só eles – prestam um ao outro. Por isso, é uma instituição
natural ou decorrente da própria natureza humana.
A sexualidade masculina e a feminina são
intencionadas pelo Criador. São inconfundíveis entre si; não se deve procurar
reduzir uma à outra. Homem e mulher foram por Deus dotados da mesma dignidade e
dos mesmos direitos. Doando-se um ao outro a fim de, juntos, se doarem a Deus,
encontram a sua plena realização.
O homem colabora para tanto com a sua
racionalidade tendente à ação forte e, por vezes, fria, ao passo que a mulher
oferece os dotes de sua intuição direta e profunda, muito sensível aos valores
da vida e muito forte na sua paciência (cf. Curso sobre problemas de Fé e
moral. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2007, p. 149; cf. Catecismo da
Igreja Católica n. 2331-2336; 2360-2363).
Para se realizar dentro do projeto de Deus,
que não varia de acordo com os arbítrios, caprichos ou legisladores humanos, a
família tem, dentro do grande patrimônio bimilenar da Igreja, alguns pontos
comuns importantes a salientar:
A
Monogamia: Para que haja um verdadeiro matrimônio é preciso
que o homem e a mulher se entreguem totalmente um ao outro sem reservas. Daí a poligamia ferir
esse componente básico do casamento por uma simples razão de bom-senso: ninguém
pode doar-se plenamente mais de uma vez ou a mais de uma pessoa ao mesmo tempo
(cf. Concílio de Trento, sessão 24, de 11 de nov. de 1563, citado por
Collantes. La Fe de la Iglesia católica, n. 1259-1263; Familiaris
consortio n. 19).
A
Indissolubilidade: tem como sinônimo a estabilidade, pois
a doação dos cônjuges há de ser incondicional, ou seja, em todos os momentos e
circunstâncias da vida (na saúde e na doença, na alegria e na tristeza etc.)
haverá o respeito e compreensão de ambos os lados. Disso decorre que a doação
sob condição (“enquanto você for amigo...”) já não é total nem verdadeiro matrimônio.
Poderá replicar alguém: mas a legislação
civil dá direito ao divórcio, ou seja, à dissolução de um casamento validamente
contraído e consumado. Respondemos que é verdade, mas, no caso, vale a Lei
Natural Moral, lei do Criador impressa na criatura (“marca do Fabricante”), que
é a indissolubilidade, e não a lei humana positiva, defensora do divórcio (cf. FC n.
83-84).
A respeito disso, diz São João Crisóstomo:
“Não apeles para as leis promulgadas pelos que estão fora... Naquele dia, Deus
não te julgará por essas leis, mas por aquelas que Ele mesmo promulgou” (Comentário
sobre 1Cor 7,39s). Em poucas palavras, esse Padre da Igreja Antiga sintetiza
uma verdade essencial da Filosofia e da Teologia Moral: a lei humana positiva
para ser válida deve ser eco da Lei Natural Moral.
Ora, os que estão “fora” ou se julgam –
erroneamente, é claro –, independentes de Deus, fazem as leis a seu bel-prazer
colocando-se muitas vezes no lugar do Criador e por essa razão tornam o seu
código legal iníquo e arbitrário, desmerecedor do acatamento dos homens de fé.
Pois bem: Deus não julgará ninguém de nós de
acordo com essas leis humanas desligadas da Lei Natural Moral, mas, sim, de
acordo com elas, pois foram por Ele promulgadas, a fim de guiarem o homem e a
mulher nos Seus caminhos. Ela é como que o manual do Fabricante em cada ser
humano. Seguindo-o não se perderá, afastando-se dele cairá na desgraça, pois
ninguém desobedece à natureza impunemente, conforme diz um provérbio popular:
“Deus perdoa sempre; o ser humano às vezes; a natureza nunca!” (cf. FC n.
20).
Certo é que, com isso, a Igreja não deixa de
atender aos casais cujos casamentos foram nulos, ou seja, que existiram só na
aparência, mas não na realidade, daí podem e devem ser declarados nulos (nunca
anulados se verdadeiramente existiram) pela Igreja. Também a Igreja pede
atenção aos casais em situações difíceis ou em segunda união, sem que a
primeira tenha sido nula. Sejam acolhidos na comunidade eclesial junto aos
seus.
A
Mútua complementação física e psíquica: sem esse sentir com o
outro (sentire cum), não há verdadeiro matrimônio. Podem existir (e, sem
dúvida, existem) desentendimentos em coisas secundárias, mas, no essencial,
mulher e homem hão de se complementar harmoniosamente, conforme se lê na
Encíclica Casti Connubii, do Papa Pio XI, de 31 de dezembro de 1930: “O
mútuo aperfeiçoamento interior dos cônjuges, o persistente esforço de
conduzir-se mutuamente à realização pode ser considerado, de acordo com o
Catecismo Romano, com toda razão e verdade como razão fundamental e sentido
próprio do matrimônio. Mas então o matrimônio há de ser encarado, em sentido
estrito, não como instituição destinada a procriar e educar a prole, mas, em
sentido mais largo, como comunidade plena de vida” (n. 24).
Também a Gaudium et Spes, do Concílio
Vaticano II, diz, em seu número 50: “O matrimônio e o amor conjugal por sua
própria índole, se ordenam à procriação e educação dos filhos. Aliás, os filhos
são o dom mais excelente do matrimônio e constituem um benefício máximo para os
próprios pais...”.
“O matrimônio, porém, não foi instituído
apenas para a finalidade da procriação... Embora os filhos muitas vezes tão
desejados, faltem, continua o matrimônio como íntima comunhão de toda a vida,
conservando o seu valor e a sua indissolubilidade” (cf. FC n. 18 e
56).
A
Educação dos filhos: Há uma ideologia, evidentemente
errônea, segundo a qual o Estado deve ter cada vez mais ingerência na vida da
família, talvez, ocupando o lugar natural que sempre coube aos pais – “com amor
paterno e materno” – na educação dos filhos.
A essa mentalidade de fundo socialista,
responde o Papa São João Paulo II, na Familiaris consortio n. 36, que
“o dever de educar mergulha as raízes na vocação primordial dos cônjuges à
participação na obra criadora de Deus: gerando no amor e por amor uma nova
pessoa, que traz em si a vocação ao crescimento e ao desenvolvimento; os pais
assumem por isso mesmo o dever de ajudá-la eficazmente a viver uma vida
plenamente humana. Como recordou o Concílio Vaticano II: ‘Os pais, que
transmitiram a vida aos filhos, têm uma gravíssima obrigação de educar a prole
e, por isso, devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais
educadores. Esta função educativa é de tanto peso que, onde não existir,
dificilmente poderá ser suprida. Com efeito, é dever dos pais criar um ambiente
de tal modo animado pelo amor e pela piedade para com Deus e para com os homens
que favoreça a completa educação pessoal e social dos filhos. A família é,
portanto, a primeira escola das virtudes sociais de que as sociedades têm
necessidade’”.
O dever dos pais na educação dos filhos é tão
primordial que “por força de tal princípio o Estado não pode nem deve subtrair
às famílias tarefas que elas podem igualmente desenvolver perfeitamente a sós
ou livremente associadas, mas favorecer positivamente e solicitar o mais
possível a iniciativa responsável das famílias. Convencidas de que o bem da
família constitui um valor indispensável e irrenunciável da comunidade civil,
as autoridades públicas devem fazer o possível por assegurar às famílias todas
aquelas ajudas – econômicas, sociais, educativas, políticas, culturais de que
têm necessidade para fazer frente de modo humano a todas as suas
responsabilidades (FC n. 45).
Os pais têm a gravíssima obrigação de formar,
no ministério da paternidade e da maternidade que lhes foi confiado por Deus no
Sacramento do Matrimônio (FC n. 38), seus filhos para os princípios
essenciais da vida de fé e os valores humanos. Daí a atenção dos cônjuges se
voltarem para três importantes fatores educacionais: a educação sexual, os valores
ensinados na escola convencional, pública ou particular, e a formação
religiosa. Vejamos cada um deles:
a)
Educação sexual: “Diante de uma cultura que ‘banaliza’
em grande parte a sexualidade humana, porque a interpreta e a vive de maneira
limitada e empobrecida, coligando-a unicamente ao corpo e ao prazer egoístico,
o serviço educativo dos pais deve dirigir-se com firmeza para uma cultura
sexual que seja verdadeira e plenamente pessoal. A sexualidade, de fato, é uma
riqueza de toda a pessoa – corpo, sentimento e alma – e manifesta o seu
significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor”.
Faz-se, portanto, importante que os pais
eduquem seus filhos para a castidade que respeita, de modo nobre, o corpo
humano segundo as normas éticas necessárias e precisas que garantam um
crescimento pessoal responsável na sexualidade do homem e da mulher. Neste
contexto, “a Igreja opõe-se firmemente a uma certa forma de informação sexual,
desligada dos princípios morais, tão difundida, que não é senão uma introdução
à experiência do prazer e um estímulo que leva à perda – ainda nos anos da
inocência – da serenidade, abrindo as portas ao vício” (FC n. 37).
b) A
relação dos pais com outras forças educativas: A
família é, por direito inalienável, a primeira, mas não a única e exclusiva
comunidade educativa dos filhos, pois fora dela existe o âmbito eclesial e
civil. Eis a razão pela qual “o Estado e a Igreja têm obrigação de prestar às
famílias todos os meios possíveis a fim de que possam exercer adequadamente os
seus deveres educativos” (FC n. 40).
Todavia, caso se ensinem, nos colégios,
“ideologias contrárias à fé cristã, cada família juntamente com outras,
possivelmente mediante formas associativas, deve com todas as forças e com
sabedoria ajudar os jovens a não se afastarem da fé. Neste caso, a família tem
necessidade de especial ajuda da parte dos pastores, que não poderão esquecer o
direito inviolável dos pais de confiar os seus filhos à comunidade eclesial”.
c)
Formação religiosa: “O Concílio Vaticano II precisa assim o
conteúdo da educação cristã: ‘Esta procura dar não só a maturidade de pessoa
humana... mas tende principalmente a fazer com que os batizados, enquanto são
introduzidos gradualmente no conhecimento do mistério da salvação, se tornem
cada vez mais conscientes do dom da fé que receberam; aprendam, principalmente
na ação litúrgica, a adorar a Deus Pai em espírito e verdade (cf. Jo
4,23), disponham-se a levar a própria vida segundo o homem novo em justiça e
santidade de verdade (Ef 4,22-24); e assim se aproximem do homem perfeito,
da idade plena de Cristo (cf. Ef 4,13) e colaborem no aumento do Corpo
Místico. Além disso, conscientes da sua vocação, habituem-se quer a testemunhar
a esperança que neles existe (cf. 1 Ped. 3, 15), quer a ajudar a
conformação cristã no mundo’.” (FC n. 39).
O cristão nunca deve se esquecer, por mais
que isso lhe custe perseguições, de que Deus criou homem e mulher e o homem
deixará seu pai e sua mãe, se unirá à mulher e já não serão dois, mas uma só
carne (Gn 1-3; Mc 10,11s; Lc 16,18 e 1 Cor 7,10; Ef 5,21-33).
Agora que estamos chegando ao final deste
Sínodo dos Bispos sobre a Família, onde vimos com muita clareza a preocupação
com os mais necessitados e, por outro lado, também a importância de uma boa
preparação para o matrimônio, sempre é bom recordar verdades que nos conduzam à
construção de um mundo novo.
Fonte:
Jornal Testemunho de Fé, páginas 16 e 17