Origem da Quaresma
Imitando Cristo no seu deserto de 40 dias,
que foi, por sua vez, a realização plena da imagem vétero-testamentária do povo
que caminhou por 40 anos no deserto até chegar à terra prometida, a Igreja
realiza a sua Quaresma: 40 dias nos quais ela se deixa, a exemplo de Jesus,
conduzir para o deserto, lugar da tentação, mas, também, do encontro com Deus,
para aí se preparar para a grande festa da Páscoa.
A Quaresma surgiu a partir de uma dupla
necessidade: a prática da penitência para que os fiéis pudessem participar da
Páscoa do Senhor e a necessidade da preparação mais intensa dos catecúmenos que
recebiam, na Vigília Pascal, os sacramentos da iniciação cristã.
Assim sendo, a Quaresma possui uma dupla
dimensão: a dimensão batismal e a dimensão penitencial. Na liturgia da Palavra
são-nos propostos três ciclos de leitura: ano A (Quaresma Batismal); ano B
(Quaresma Cristocêntrica); ano C (Quaresma Penitencial). O ciclo A é mais
antigo e propõe textos que possuem uma dimensão marcadamente batismal, tendo em
vista que neste período, já na Igreja primitiva, dava-se início à iniciação
cristã dos adultos.
Exercícios quaresmais
A Quaresma é vivida por muitos cristãos, na
maioria das vezes, como um fardo demasiadamente pesado. Muitos vivem as
práticas da Quaresma – notadamente, a oração, o jejum e a esmola – como se elas
significassem a satisfação do desejo descontrolado de Deus de ver-nos
sobrecarregados de sacrifícios que servem para expiar os nossos muitos pecados.
Essa é uma forma errada de ver a Quaresma. O que nela começamos, devemos
continuar no decorrer do ano litúrgico.
Os assim chamados “exercícios quaresmais”,
não seriam propriamente “exercícios” se não tivessem como finalidade criar em
nós disposições e atitudes que estimulem a vida cristã durante todo o ano
litúrgico. O que vivemos na Quaresma, então, deve produzir frutos maduros em
nós. Os exercícios que aqui começamos não podem terminar neste tempo.
Jejum
Durante o período quaresmal, a Igreja nos
convida, sobretudo, a três exercícios: o jejum, a oração e a esmola. Reflitamos
um pouco sobre cada um desses exercícios. O jejum, por exemplo, é um dos
exercícios quaresmais muito mal vividos. Vivemos o jejum como se Deus
precisasse desse sacrifício para nos oferecer o perdão dos nossos pecados. Como
conciliar essa mentalidade com Mateus 12, 7, onde o Senhor, citando Oséias 6,6,
nos afirma que quer a misericórdia e não o sacrifício? Será então que não
devemos fazer o jejum? Ou será que o espírito com o qual fazemos o jejum não
está equivocado? Devemos modificar a nossa forma de ver o jejum. Não é que Deus
precise do nosso jejum para poder nos perdoar, como se esse sacrifício fosse
uma forma de aplacar a ira divina. Nós é que precisamos do jejum para
aprendermos a nos relacionar com os bens da criação.
Pelo pecado original – doutrina católica
apoiada na verdade que nos é revelada na Sagrada Escritura e muito
negligenciada atualmente, sobretudo em alguns círculos teológicos – a
verdadeira natureza das coisas ficou velada para o homem, e este, ao invés de
reconhecer o Criador nas criaturas, acabou por idolatrar as criaturas,
esquecendo-se do seu Criador. O jejum tira-nos da idolatria das criaturas.
O jejum nos ensina uma nova forma de lidar
com os alimentos, vendo-os não como uma fonte de prazer somente, mas como dom
de Deus. Através do jejum aprendemos a controlar a nossa sede de prazer e a não
sermos mais dominados pelo instinto. Aprendemos
que o prazer é benéfico, é também dom de Deus, mas nós é que devemos
controlá-lo, e não ele a nós. A experiência que fazemos com o jejum redunda em
todas as outras áreas da nossa vida, inclusive na própria sexualidade. Evágrio
Pôntico diz no seu Tratado Prático que: “Quando a concupiscência se inflama, a
extinguem a fome (jejum), a fadiga e a solidão.”
Oração
A oração, por sua vez, nos faz sair da ilusão
de que nós somos capazes de resolver tudo com as nossas próprias mãos. Ela nos
tira da nossa autossuficiência e nos projeta para o Deus verdadeiro, Aquele que
é realmente onipotente. Este é o tempo favorável para através da oração diária
nos tornarmos mais íntimos de Deus.
A Quaresma é um tempo propício para
participarmos melhor da liturgia da Igreja e, também, para orarmos com a
Palavra de Deus. A Palavra de Deus nos proporciona um itinerário espiritual. É
ela que deve orientar a nossa vida espiritual na Quaresma e em qualquer tempo
litúrgico.
Esmola
A esmola, ou a caridade, como quisermos
chamá-la, nos faz quebrar a idolatria do ter. Pela esmola, aprendemos a dividir
com o próximo aquilo o que Deus confiou a nós para que o administrássemos. Pela
prática da esmola, entendemos que não somos donos de nada, mas meros
administradores dos bens de Deus. A esmola tira-nos do perigo de sermos
possuídos pelos bens. Às vezes, pensamos tanto ser donos dos bens que Deus nos
confiou, que no final eles é que se tornam nossos donos, acabamos sendo
possuídos pelas coisas. A esmola nos liberta dessa possessão e deixa o nosso
coração livre para Deus.
São Máximo Confessor, reconhecendo que a
avareza é um dos males que dominam o homem, nos estimula ao desprendimento, à
esmola, quando nos diz na sua obra “Centúrias sobre a Caridade”, n. 18: “O
amante do prazer ama o dinheiro para deleitar-se mediante ele. O que se
vangloria para ser glorificado por ele. O que não tem fé para escondê-lo e
custodiá-lo, tendo medo da fome, da velhice, da doença ou do exílio; e espera
mais nele (no dinheiro) do que em Deus, autor e providência da criação toda,
até dos últimos e menores seres vivos”.
Como podemos ver, essas práticas, então, não
servem somente para este período do ano litúrgico. Elas são praticadas de modo
mais intenso agora, como “exercício”, e depois continuam em todo o ano
litúrgico. Que este seja nosso programa. Que o itinerário quaresmal não seja
para nós um fardo a carregar, mas um programa de vida, um constante caminho de
santificação.
Por fim, tenhamos sempre diante dos nossos
olhos, sobretudo nestes dias de Quaresma, a “Cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo”. A Cruz é o “sinal da vida”. É assim que São Gregório Magno a chama no
Livro II dos Diálogos, quando narra o milagre pelo qual São Bento fora salvo da
morte por envenenamento ao traçar sobre a taça de vinho o sinal da cruz:
“Tomaram, pois, a resolução de colocar veneno no seu vinho. Quando, segundo o
costume monástico, apresentaram ao Pai, que estava sentado à mesa, a taça de
vidro com a bebida mortífera para ser abençoada, Bento estendeu a mão e traçou
o sinal da cruz. A este gesto, a taça, que estava a certa distância dele,
estalou e fez-se em pedaços, como se ao invés da Cruz lhe tivesse atirado uma
pedra. O homem de Deus logo compreendeu que o vaso continha uma bebida mortal,
pois não pôde suportar o sinal da vida.” Tenhamos todos os dias, começando pela
Quaresma, esse sinal diante de nós. O chamado de Cristo para nós é um chamado à
vida, mas não à vida nesse mundo pura e simplesmente. Cristo nos chama à vida
verdadeira, a qual se alcança pela cruz, como Ele o fez.
Uma
santa Quaresma a todos!
Pe.
Fábio Siqueira
Vice-Diretor
das Escolas de Fé Mater Ecclesiae e Luz e Vida