Por D. Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro
Sob a
ótica da fraternidade o Papa Francisco envia para o mundo, na
solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, ao iniciar um novo ano, a sua primeira mensagem
para o Dia Mundial da Paz.
A alegria
e a esperança devem, segundo o Papa Francisco, ser o binário para vivermos a
fraternidade individual e coletiva no mundo.
Ensina o
Papa que: "a fraternidade é uma dimensão essencial do homem, sendo ele um
ser relacional. A consciência viva desta dimensão relacional leva-nos a ver e
tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão; sem tal
consciência, torna-se impossível a construção duma sociedade justa, duma paz
firme e duradoura. E convém desde já lembrar que a fraternidade se começa a
aprender habitualmente no seio da família, graças, sobretudo às funções
responsáveis e complementares de todos os seus membros, mormente do pai e da
mãe”.
Ciente da
importância dos meios de comunicação diz o Papa que "vemos semeada a
vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e
cuidam uns dos outros. Contudo, ainda hoje, esta vocação é muitas vezes
contrastada e negada nos fatos, num mundo caracterizado pela «globalização da
indiferença» que lentamente nos faz «habituar» ao sofrimento alheio,
fechando-nos em nós mesmos".
Neste
tempo de mudança de época é importante ressaltar que a dinâmica da
solidariedade, da partilha e da fraternidade parecem estar fora de moda.
Calaram profundamente no coração dos católicos os três conselhos repetidos pelo
Papa Francisco no domingo da Sagrada Família, como três tesouros a serem
vividos como regras básicas de vivência e de convivência familiar: "dá
licença, obrigado, perdão". Quando em uma família não se é um intruso e se
pede “com licença”, quando em uma família não se é egoísta e se aprende a dizer
“obrigado”, e quando em uma família alguém se dá conta que fez uma coisa errada
e pede “perdão”, então nesta família existe paz e alegria. Neste ponto, o
Pontífice encorajou as famílias a tomarem consciência da importância que tem na
Igreja e na sociedade. “O anúncio do Evangelho – disse o Papa -, passa de fato,
antes de tudo, através das famílias para depois, chegar até aos diversos
âmbitos da vida diária”.
O Papa
Francisco denunciou a guerra silenciosa que em muitas partes do mundo se tem
propagado contra o direito à prática religiosa. Denunciou os tráficos humanos e
as suas muitas facetas, as guerras armadas, e "às guerras feitas de
confrontos armados juntam-se guerras menos visíveis, mas não menos cruéis, que
se combatem nos campos econômico e financeiro com meios igualmente demolidores
de vidas, de famílias, de empresas. A globalização, como afirmou Bento XVI,
torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. As inúmeras situações de
desigualdade, pobreza e injustiça indicam não só uma profunda carência de
fraternidade, mas também a ausência duma cultura de solidariedade. As novas
ideologias, caracterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e
consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela
mentalidade do «descartável» que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos,
daqueles que são considerados «inúteis». Assim, a convivência humana assemelha-se
sempre mais a um mero do ut des pragmático e egoísta".
"Uma
verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade
transcendente. A partir do reconhecimento desta paternidade, consolida-se a
fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se «próximo» para cuidar do
outro".
O Papa
Francisco pergunta "onde está o teu irmão?". "Para compreender
melhor esta vocação do homem à fraternidade e para reconhecer de forma mais
adequada os obstáculos que se interpõem à sua realização e identificar as vias
para a superação dos mesmos, é fundamental deixar-se guiar pelo conhecimento do
desígnio de Deus, tal como se apresenta de forma egrégia na Sagrada Escritura.
Segundo a narração das origens, todos os homens provêm dos mesmos pais, de Adão
e Eva, casal criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,
26), do qual nascem Caim e Abel. Na história desta família primigénia, lemos a
origem da sociedade, a evolução das relações entre as pessoas e os povos. Abel
é pastor, Caim agricultor. A sua identidade profunda e, conjuntamente, a sua
vocação é ser irmãos, embora na diversidade da sua atividade e cultura, da
sua maneira de se relacionarem com Deus e com a criação. Mas o assassinato de
Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos.
A sua história (cf. Gn 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a
que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros.
Caim, não aceitando a predileção de Deus por Abel, que Lhe oferecia o melhor do
seu rebanho – «o Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não
olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta» (Gn 4, 4-5) –, mata Abel
por inveja. Desta forma, recusa reconhecer-se irmão, relacionar-se
positivamente com ele, viver diante de Deus, assumindo as suas
responsabilidades de cuidar e proteger o outro. À pergunta com que Deus
interpela Caim – «onde está o teu irmão?» –, pedindo-lhe contas da sua ação,
responde: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9).
Depois – diz-nos o livro do Gênesis –, «Caim afastou-se da presença do Senhor»
(4, 16). É preciso interrogar-se sobre os motivos profundos que induziram Caim
a ignorar o vínculo de fraternidade e, simultaneamente, o vínculo de
reciprocidade e comunhão que o ligavam ao seu irmão Abel. O próprio Deus
denuncia e censura a Caim a sua contigüidade com o mal: «o pecado deitar-se-á à
tua porta» (Gn 4, 7). Mas Caim recusa opor-se ao mal, e decide igualmente
«lançar-se sobre o irmão» (Gn 4, 8), desprezando o projeto de Deus. Deste
modo, frustra a sua vocação original para ser filho de Deus e viver a
fraternidade".
O Papa
Francisco, partindo de sua experiência de viver o que prega, lembra que "o
egoísmo diário, que está na base de muitas guerras e injustiças: na realidade,
muitos homens e mulheres morrem pela mão de irmãos e irmãs que não sabem
reconhecer-se como tais, isto é, como seres feitos para a reciprocidade, a
comunhão e a doação". Egoísmo, a meta para ser vencida em todas as relações
de 2014.
A mensagem
coloca também uma afirmação: "E vós sois todos irmãos» (Mt 23,
8)" E questiona: "Surge espontaneamente a pergunta: poderão um
dia os homens e as mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de
fraternidade, gravado neles por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas
forças, vencer a indiferença, o egoísmo e o ódio, aceitar as legítimas
diferenças que caracterizam os irmãos e as irmãs?"
"A
raiz da fraternidade está contida na paternidade de Deus. Não se trata de uma
paternidade genérica, indistinta e historicamente ineficaz, mas do amor
pessoal, solícito e extraordinariamente concreto de Deus por cada um dos homens
(cf. Mt 6, 25-30). Trata-se, por conseguinte, de uma paternidade
eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus, quando é acolhido,
torna-se no mais admirável agente de transformação da vida e das relações com o
outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha ativa. Em
particular, a fraternidade humana foi regenerada em e por Jesus
Cristo, com a sua morte e ressurreição. A cruz é o «lugar» definitivo de fundação da
fraternidade que os homens, por si sós, não são capazes de gerar. Jesus Cristo,
que assumiu a natureza humana para a redimir, amando o Pai até à morte e morte
de cruz (cf. Fl 2, 8), por meio da sua ressurreição constitui-nos
como humanidade nova, em plena comunhão com a vontade de Deus, com o seu
projeto, que inclui a realização plena da vocação à fraternidade".
“A
fraternidade é fundamento e caminho para a paz”. "A solidariedade
cristã pressupõe que o próximo seja amado não só como «um ser humano com
os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais,
mas [como] a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus
Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo», como um irmão.
«Então a consciência da paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os
homens em Cristo, “filhos no Filho”, e da presença e da ação vivificante do
Espírito Santo conferirá – lembra João Paulo II – ao nosso olhar
sobre o mundo como que um novo critério para o “interpretar, para o
transformar".
"Reconhece-se
haver necessidade também de políticas que sirvam para atenuar a excessiva
desigualdade de rendimento. Não devemos esquecer o ensinamento da Igreja sobre
a chamada hipoteca social, segundo a qual, se é lícito – como diz São
Tomás de Aquino – e mesmo necessário que «o homem tenha a propriedade dos
bens», quanto ao uso, porém, «não deve considerar as coisas exteriores que
legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de
que possam beneficiar não só a si mas também aos outros".
Por último
o Papa nos ensina o desapego: "há uma forma de promover a fraternidade –
e, assim, vencer a pobreza – que deve estar na base de todas as outras. É o
desapego vivido por quem escolhe estilos de vida sóbrios e essenciais, por
quem, partilhando as suas riquezas, consegue assim experimentar a comunhão
fraterna com os outros. Isto é fundamental, para seguir Jesus Cristo e ser
verdadeiramente cristão. É o caso não só das pessoas consagradas que professam
voto de pobreza, mas também de muitas famílias e tantos cidadãos responsáveis
que acreditam firmemente que a relação fraterna com o próximo constitua o bem
mais precioso".
Falando
aos responsáveis pela economia e aos governos adverte o Papa Francisco
que: "As sucessivas crises econômicas devem levar a
repensar adequadamente os modelos de desenvolvimento econômico e a mudar os
estilos de vida. A crise atual, com pesadas conseqüências na vida das pessoas,
pode ser também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência,
temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos
difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a
confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que
a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são
necessárias, sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da
dignidade humana".
O Papa
pede o fim das guerras e da disseminação das armas. Diz Francisco que:
"desejo dirigir um forte apelo a quantos semeiam violência e morte, com as
armas: naquele que hoje considerais apenas um inimigo a abater, redescobri o
vosso irmão e detende a vossa mão! Renunciai à via das armas e ide ao encontro
do outro com o diálogo, o perdão e a reconciliação para reconstruir a justiça,
a confiança e esperança ao vosso redor!".
O Papa
Francisco condena a corrupção clamando por honestidade, justiça social e
transparência, principalmente para vencer o egoísmo. Convida os homens públicos
a respeitar a liberdade religiosa. Condena o drama da droga "com a qual se
lucra desafiando leis morais e civis, na devastação dos recursos
naturais". Deplora a prostituição, o tráfico de seres humanos, os crimes
contra os menores, a escravidão e a ilegalidade. Clama por um sistema prisional
que recupere os detentos.
Enfim, o
Papa pede que a família humana cuide da natureza, que está a disposição do
homem que deve administrá-la responsavelmente. O Papa volta o seu olhar ao
setor agrícola pedindo “que a fome seja erradicada e que a produção agrícola
seja para o uso universal de todos".
A fraternidade deve ser amada, ser
descoberta e testemunhada: "Quando falta esta abertura a Deus, toda a
atividade humana se torna mais pobre, e as pessoas são reduzidas a objeto
passível de exploração. Somente se a política e a economia aceitarem mover-se
no amplo espaço assegurado por esta abertura Àquele que ama todo o homem e
mulher, é que conseguirão estruturar-se com base num verdadeiro espírito de
caridade fraterna e poderão ser instrumento eficaz de desenvolvimento humano
integral e de paz".
Sob o
legado deixado pelo testemunho do Papa Francisco, contemplando o Cristo
Redentor, onde celebrei a missa de “passagem de ano”, de braços abertos
abençoando o Rio de Janeiro e o Brasil, invoco a Fraternidade como itinerário
para se viver a paz que tanto precisamos e derrotar todas as facetas do mal, da
maldade humana em que não nos deixam viver como pede o Evangelho: como irmãos
que partilham, que amam, que perdoam, e como Cristo, que não se deixa perder
nenhum dos seus filhos. Paz na terra aos homens de boa vontade!
Uma
mensagem atual e densa de propostas que marcam este início de ano! “Que Maria,
a Mãe de Jesus, nos ajude a compreender e a viver todos os dias a fraternidade
que jorra do coração do seu Filho, para levar a paz a todo o homem que viver
nesta nossa amada terra.”