quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Paz e Fraternidade

Por D. Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro

Sob a ótica da fraternidade o Papa Francisco envia para o mundo, na solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, ao iniciar um novo ano, a sua primeira mensagem para o Dia Mundial da Paz.
A alegria e a esperança devem, segundo o Papa Francisco, ser o binário para vivermos a fraternidade individual e coletiva no mundo.
Ensina o Papa que: "a fraternidade é uma dimensão essencial do homem, sendo ele um ser relacional. A consciência viva desta dimensão relacional leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão; sem tal consciência, torna-se impossível a construção duma sociedade justa, duma paz firme e duradoura. E convém desde já lembrar que a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família, graças, sobretudo às funções responsáveis e complementares de todos os seus membros, mormente do pai e da mãe”.
Ciente da importância dos meios de comunicação diz o Papa que "vemos semeada a vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros. Contudo, ainda hoje, esta vocação é muitas vezes contrastada e negada nos fatos, num mundo caracterizado pela «globalização da indiferença» que lentamente nos faz «habituar» ao sofrimento alheio, fechando-nos em nós mesmos".
Neste tempo de mudança de época é importante ressaltar que a dinâmica da solidariedade, da partilha e da fraternidade parecem estar fora de moda. Calaram profundamente no coração dos católicos os três conselhos repetidos pelo Papa Francisco no domingo da Sagrada Família, como três tesouros a serem vividos como regras básicas de vivência e de convivência familiar: "dá licença, obrigado, perdão". Quando em uma família não se é um intruso e se pede “com licença”, quando em uma família não se é egoísta e se aprende a dizer “obrigado”, e quando em uma família alguém se dá conta que fez uma coisa errada e pede “perdão”, então nesta família existe paz e alegria. Neste ponto, o Pontífice encorajou as famílias a tomarem consciência da importância que tem na Igreja e na sociedade. “O anúncio do Evangelho – disse o Papa -, passa de fato, antes de tudo, através das famílias para depois, chegar até aos diversos âmbitos da vida diária”.

O Papa Francisco denunciou a guerra silenciosa que em muitas partes do mundo se tem propagado contra o direito à prática religiosa. Denunciou os tráficos humanos e as suas muitas facetas, as guerras armadas, e "às guerras feitas de confrontos armados juntam-se guerras menos visíveis, mas não menos cruéis, que se combatem nos campos econômico e financeiro com meios igualmente demolidores de vidas, de famílias, de empresas. A globalização, como afirmou Bento XVI, torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. As inúmeras situações de desigualdade, pobreza e injustiça indicam não só uma profunda carência de fraternidade, mas também a ausência duma cultura de solidariedade. As novas ideologias, caracterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e consumismo materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do «descartável» que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados «inúteis». Assim, a convivência humana assemelha-se sempre mais a um mero do ut des pragmático e egoísta".
"Uma verdadeira fraternidade entre os homens supõe e exige uma paternidade transcendente. A partir do reconhecimento desta paternidade, consolida-se a fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se «próximo» para cuidar do outro".
O Papa Francisco pergunta "onde está o teu irmão?". "Para compreender melhor esta vocação do homem à fraternidade e para reconhecer de forma mais adequada os obstáculos que se interpõem à sua realização e identificar as vias para a superação dos mesmos, é fundamental deixar-se guiar pelo conhecimento do desígnio de Deus, tal como se apresenta de forma egrégia na Sagrada Escritura. Segundo a narração das origens, todos os homens provêm dos mesmos pais, de Adão e Eva, casal criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), do qual nascem Caim e Abel. Na história desta família primigénia, lemos a origem da sociedade, a evolução das relações entre as pessoas e os povos. Abel é pastor, Caim agricultor. A sua identidade profunda e, conjuntamente, a sua vocação é ser irmãos, embora na diversidade da sua atividade e cultura, da sua maneira de se relacionarem com Deus e com a criação. Mas o assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gn 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros. Caim, não aceitando a predileção de Deus por Abel, que Lhe oferecia o melhor do seu rebanho – «o Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta» (Gn 4, 4-5) –, mata Abel por inveja. Desta forma, recusa reconhecer-se irmão, relacionar-se positivamente com ele, viver diante de Deus, assumindo as suas responsabilidades de cuidar e proteger o outro. À pergunta com que Deus interpela Caim – «onde está o teu irmão?» –, pedindo-lhe contas da sua ação, responde: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Depois – diz-nos o livro do Gênesis –, «Caim afastou-se da presença do Senhor» (4, 16). É preciso interrogar-se sobre os motivos profundos que induziram Caim a ignorar o vínculo de fraternidade e, simultaneamente, o vínculo de reciprocidade e comunhão que o ligavam ao seu irmão Abel. O próprio Deus denuncia e censura a Caim a sua contigüidade com o mal: «o pecado deitar-se-á à tua porta» (Gn 4, 7). Mas Caim recusa opor-se ao mal, e decide igualmente «lançar-se sobre o irmão» (Gn 4, 8), desprezando o projeto de Deus. Deste modo, frustra a sua vocação original para ser filho de Deus e viver a fraternidade".
O Papa Francisco, partindo de sua experiência de viver o que prega, lembra que "o egoísmo diário, que está na base de muitas guerras e injustiças: na realidade, muitos homens e mulheres morrem pela mão de irmãos e irmãs que não sabem reconhecer-se como tais, isto é, como seres feitos para a reciprocidade, a comunhão e a doação". Egoísmo, a meta para ser vencida em todas as relações de 2014.
A mensagem coloca também uma afirmação: "E vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8)"  E questiona: "Surge espontaneamente a pergunta: poderão um dia os homens e as mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de fraternidade, gravado neles por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas forças, vencer a indiferença, o egoísmo e o ódio, aceitar as legítimas diferenças que caracterizam os irmãos e as irmãs?"
"A raiz da fraternidade está contida na paternidade de Deus. Não se trata de uma paternidade genérica, indistinta e historicamente ineficaz, mas do amor pessoal, solícito e extraordinariamente concreto de Deus por cada um dos homens (cf. Mt 6, 25-30). Trata-se, por conseguinte, de uma paternidade eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus, quando é acolhido, torna-se no mais admirável agente de transformação da vida e das relações com o outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha ativa. Em particular, a fraternidade humana foi regenerada em e por Jesus Cristo, com a sua morte e ressurreição. A cruz é o «lugar» definitivo de fundação da fraternidade que os homens, por si sós, não são capazes de gerar. Jesus Cristo, que assumiu a natureza humana para a redimir, amando o Pai até à morte e morte de cruz (cf. Fl 2, 8), por meio da sua ressurreição constitui-nos como humanidade nova, em plena comunhão com a vontade de Deus, com o seu projeto, que inclui a realização plena da vocação à fraternidade".
“A fraternidade é fundamento e caminho para a paz”. "A solidariedade cristã pressupõe que o próximo seja amado não só como «um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais, mas [como] a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo», como um irmão. «Então a consciência da paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os homens em Cristo, “filhos no Filho”, e da presença e da ação vivificante do Espírito Santo conferirá – lembra João Paulo II – ao nosso olhar sobre o mundo como que um novo critério para o “interpretar, para o transformar".
"Reconhece-se haver necessidade também de políticas que sirvam para atenuar a excessiva desigualdade de rendimento. Não devemos esquecer o ensinamento da Igreja sobre a chamada hipoteca social, segundo a qual, se é lícito – como diz São Tomás de Aquino – e mesmo necessário que «o homem tenha a propriedade dos bens», quanto ao uso, porém, «não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros".
Por último o Papa nos ensina o desapego: "há uma forma de promover a fraternidade – e, assim, vencer a pobreza – que deve estar na base de todas as outras. É o desapego vivido por quem escolhe estilos de vida sóbrios e essenciais, por quem, partilhando as suas riquezas, consegue assim experimentar a comunhão fraterna com os outros. Isto é fundamental, para seguir Jesus Cristo e ser verdadeiramente cristão. É o caso não só das pessoas consagradas que professam voto de pobreza, mas também de muitas famílias e tantos cidadãos responsáveis que acreditam firmemente que a relação fraterna com o próximo constitua o bem mais precioso".
Falando aos responsáveis pela economia e aos governos adverte o Papa Francisco que:    "As sucessivas crises econômicas devem levar a repensar adequadamente os modelos de desenvolvimento econômico e a mudar os estilos de vida. A crise atual, com pesadas conseqüências na vida das pessoas, pode ser também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência, temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são necessárias, sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da dignidade humana".
O Papa pede o fim das guerras e da disseminação das armas. Diz Francisco que: "desejo dirigir um forte apelo a quantos semeiam violência e morte, com as armas: naquele que hoje considerais apenas um inimigo a abater, redescobri o vosso irmão e detende a vossa mão! Renunciai à via das armas e ide ao encontro do outro com o diálogo, o perdão e a reconciliação para reconstruir a justiça, a confiança e esperança ao vosso redor!".
O Papa Francisco condena a corrupção clamando por honestidade, justiça social e transparência, principalmente para vencer o egoísmo. Convida os homens públicos a respeitar a liberdade religiosa. Condena o drama da droga "com a qual se lucra desafiando leis morais e civis, na devastação dos recursos naturais". Deplora a prostituição, o tráfico de seres humanos, os crimes contra os menores, a escravidão e a ilegalidade. Clama por um sistema prisional que recupere os detentos.
Enfim, o Papa pede que a família humana cuide da natureza, que está a disposição do homem que deve administrá-la responsavelmente. O Papa volta o seu olhar ao setor agrícola pedindo “que a fome seja erradicada e que a produção agrícola seja para o uso universal de todos".
            A fraternidade deve ser amada, ser descoberta e testemunhada: "Quando falta esta abertura a Deus, toda a atividade humana se torna mais pobre, e as pessoas são reduzidas a objeto passível de exploração. Somente se a política e a economia aceitarem mover-se no amplo espaço assegurado por esta abertura Àquele que ama todo o homem e mulher, é que conseguirão estruturar-se com base num verdadeiro espírito de caridade fraterna e poderão ser instrumento eficaz de desenvolvimento humano integral e de paz".
Sob o legado deixado pelo testemunho do Papa Francisco, contemplando o Cristo Redentor, onde celebrei a missa de “passagem de ano”, de braços abertos abençoando o Rio de Janeiro e o Brasil, invoco a Fraternidade como itinerário para se viver a paz que tanto precisamos e derrotar todas as facetas do mal, da maldade humana em que não nos deixam viver como pede o Evangelho: como irmãos que partilham, que amam, que perdoam, e como Cristo, que não se deixa perder nenhum dos seus filhos. Paz na terra aos homens de boa vontade!
Uma mensagem atual e densa de propostas que marcam este início de ano! “Que Maria, a Mãe de Jesus, nos ajude a compreender e a viver todos os dias a fraternidade que jorra do coração do seu Filho, para levar a paz a todo o homem que viver nesta nossa amada terra.”