D.
Orani João Tempesta
Cardeal
Arcebispo do Rio de Janeiro
Acaba de ser publicada a aguardada Exortação
pós-sinodal sobre a Família, do Papa Francisco, que tem por título “A alegria
do amor” (Amoris Laetitia). É um documento longo que cita muito o parecer dos
Padres Sinodais. Os cardeais e o casal que apresentaram o documento na sala de
imprensa do Vaticano foram unânimes em falar da alegria em ler esse documento e
a importância de acolhe-lo com carinho.
São 325 parágrafos distribuídos em nove
partes assim discriminadas: À luz da Palavra; A realidade e os desafios da
família; Olhar fixo em Jesus: A vocação da família; O amor no matrimônio; O
amor que se torna fecundo; Algumas perspectivas familiares; Reforçar a educação
dos filhos; Acompanhar, discernir e integrar a familiaridade e espiritualidade
conjugal e familiar. Encerra-se com uma Oração à Sagrada Família.
Seu conteúdo é assim sintetizado pelo Papa:
“No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada
Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a situação
atual das famílias, para manter os pés no chão. Depois lembrarei alguns
elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família,
seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida
destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas
e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos
filhos. Depois deter-me-ei em um convite à misericórdia e ao discernimento
pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos
propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar” (n.
6).
O Documento tem, pois, início lembrando que,
não obstante as crises pelas quais passa a família, enquanto instituição
querida por Deus, o desejo de perpetuá-la permanece vivo nas novas gerações,
conforme observaram os Padres Sinodais e, por isso, é preciso se debruçar sobre
a família com seus valores e desafios nos nossos dias sob o prisma moral,
doutrinal, espiritual e pastoral. Isto tudo, sem negar o Magistério da Igreja,
dá lugar à pluralidade de interpretações de uma mesma doutrina em diversos
locais diferentes à luz da Misericórdia de Deus, cujo Ano Extraordinário
estamos vivendo (n. 1-8).
Passa o Papa a lembrar que a Sagrada
Escritura está repleta de histórias de famílias com suas alegrias, belezas e
dificuldades, sem que essa instituição esmoreça. Muito aparece também a
expressão “Tu e tua esposa”, ou seja, o homem e a mulher (por exemplo, Mt 19,9
que remete a Gn 2,24 e 1,27) a terem seus filhos e filhas como brotos de
oliveira ao redor de tua mesa (cf. Sl 128/127,3); as primeiras comunidades
cristãs se reúnem em casas, local da convivência familiar por excelência. É, no
entanto, também na família que ocorrem experiências dolorosas de brigas,
doenças e mortes, mas, no fim dos tempos, Deus enxugará nossas lágrimas e não
haverá mais morte ou dor (cf. Ap 21,4). Dentro da mesma família com suas
dificuldades, estão também dois pontos importantes do convívio material e
espiritual: o trabalho e o carinho do abraço, que é responsabilidade de todos
(cf. n. 9-30).
Entra o documento em seu terceiro capítulo
nos desafios vividos hoje pela família à luz da realidade em que estamos – com
suas mudanças antropológicas e culturais – e não a partir apenas de uma
discussão abstrata. Há de se oferecer como remédios à família como mero lugar
de passagem e de individualismo, o convívio e a reciprocidade em todas as
áreas. Também não centrar o matrimônio na procriação, mas na união (aspecto
unitivo), na preparação aos jovens casais para o matrimônio sob o olhar
exigente, porém, ao mesmo tempo, compassivo de Jesus, a educação para se evitar
o descarte (relaciona-se e separa-se com facilidade ímpar), o medo do
compromisso com o futuro parece dizer aos jovens: “viva a vida não assuma
compromissos familiares”, a pornografia faz mal, pois distorce o verdadeiro
amor, a queda das natalidades ameaça certos países ou povos na economia e na
própria identidade, há enfraquecimento da prática religiosa, falta de habitação
digna, filhos nascidos de relações transitórias, abuso sexual de crianças,
famílias migrantes ou com membros deficientes, idosos ou que vivem na miséria
chocam nossos tempos. Assome-se a isso a falta de educação, a dependência
química, a poligamia, o menosprezo ainda existente à mulher, a ideologia de
gênero a negar a identidade sexual: não haveria mais homem ou mulher, mas
apenas um ser humano neutro. Apesar de tudo isso, demos graças a Deus pelas
famílias que vivem no amor verdadeiro e fiel (cf. n. 31-57).
Ante todos esses desafios, não se pode deixar
de lado o querigma. Neste ponto, o Papa recolhe uma síntese da doutrina da
Igreja sobre o matrimônio e a família. Também cita várias contribuições
prestadas pelos Padres sinodais nas suas considerações acerca da luz que a fé
nos oferece. Ainda hoje, no Senhor, temos o nosso compromisso de viver e transmitir
o Evangelho da família. Ele nasceu e viveu na família de Nazaré e restaurou o
plano primeiro do Matrimônio, conforme sonhado por Deus para todos. Passa, a
seguir, o Papa à doutrina do Concílio Ecumênico Vaticano II, de Paulo VI e de
João Paulo II sobre a Família para, depois, entrar no sacramento em si: nele o
próprio casal é ministro e não o sacerdote. Em meio a essa beleza dos
ensinamentos bíblicos e eclesiais, não faltam os desafios, especialmente na
geração e educação dos filhos. Nisso as famílias que permanecem sempre fiéis à
Igreja dão grande testemunho aos demais irmãos e irmãs na fé (cf. n. 58-88).
Penetrando na essência do Matrimônio, diz-se
que ele deve “aperfeiçoar o amor dos cônjuges”, para isso são apresentadas
alguns pontos essenciais extraídos da Carta de Paulo aos Coríntios (13,4-7):
paciência, atitude de serviço, cura da inveja, combater o orgulho e a
arrogância, ser amável, desprender-se de si mesmo, não guardar violência
interior, perdoar, alegrar-se com os outros; desculpar-se, confiar, esperar,
suportar-se, bem como crescer na caridade conjugal tendo tudo em comum,
valorizando a alegria e a beleza da vida a dois que leva a se casar por um amor
que se manifesta e cresce a cada dia, dialoga, se apaixona, navega pelas
fantasias lícitas, sente alegria nos filhos, vive a dimensão erótica do amor
conjugal, combate a violência e a manipulação e não menospreza, ao lado do
casamento santo, a vida una e indivisa da virgindade e do celibato nem deixa
que o amor se transforme com o passar dos anos em que as aparências físicas não
são as mesmas: o amor não cria rugas como o corpo (cf. n. 89-164).
Francisco entra, após tratar mais do aspecto
unitivo, no aspecto fecundo do Matrimônio. Fala da transmissão e geração da
vida. Diz o Papa: “Se uma criança chega ao mundo em circunstâncias não
desejadas, os pais ou os outros membros da família devem fazer todo o possível
para aceitá-la como dom de Deus e assumir a responsabilidade de acolhê-la com
magnanimidade e carinho” (n.166).
A Igreja louva as famílias numerosas, mas
pede responsabilidade na geração dos filhos a fim de que não se coloque no
mundo uma criança que passará graves necessidades. Pede ainda a valorização da
gravidez com o amor da mãe e do pai àquela criança, bem como exorta ao que se
chama de “paternidade alargada”, ou seja, ser pai ou mãe não é apenas um fato
biológico, mas do coração. Daí, as adoções, as ajudas à sociedade em geral, o
cuidado com os abandonados e frágeis. A Eucaristia exige compromisso com o
irmão. É preciso também que a família tenha um coração grande em que caibam
todos: filhos, irmãos e idosos (os avós), além de se viver a família alargada,
ou seja, a união entre os familiares em geral: tios, primos de vários graus,
cunhados etc. (cf. n. 165-198).
Isso posto, o Papa entra em alguns pontos
pastorais sem anular as realidades locais nas quais essas pastorais ocorrerão.
Dentre os pontos estão: o anúncio do Evangelho da família, como célula-mãe da
sociedade, a formação seminarística e laical com vistas ao apreço familiar em suas
alegrias e agruras, a valorização pelas Igrejas locais dos “Cursos de
preparação para o Matrimônio”, bem como a digna organização da celebração do
Sacramento com leituras bíblicas próprias e insistência de que aquele é um
compromisso a durar a vida inteira e não apenas naquele momento de tensão e
luzes, filmagens, convidados etc.
Importa ainda uma pastoral específica para
acompanhar os casais jovens em seus desafios e alegrias a fim de perceberem que
a Igreja se interessa por eles e por suas famílias, especialmente o estar
juntos para rezar e conviver, inclusive com outras famílias próximas do mesmo
bairro, prédio ou condomínio. Fortalecida por essas “vitaminas”, as famílias
conseguem resistir melhor aos problemas inerentes à natureza humana e ao
próprio compromisso assumido a gerar feridas que perduram por muitos anos e
podem levar ao fim de um casamento. A Igreja, contudo, não deve deixar de
acompanhar aquele casal, mesmo após o divórcio, não importando por quais
circunstâncias ele tenha ocorrido, fazendo-o sentir que não está excomungado e
incentivando-o a reatar o relacionamento ou a averiguar junto às instâncias
competentes se seu matrimônio não foi nulo, embora nunca devam deixar de pensar
nos filhos a serem educados. Chama a atenção os denominados matrimônios mistos
e com disparidade de culto, bem como entre pessoas não batizadas ou famílias
monoparentais (geralmente a mãe cuida do filho). Todos os casos devem ser bem
avaliados por seus bispos, ainda que a união entre pessoas do mesmo sexo não
possa ser, jamais, equiparada a casamento, não obstante as pressões
internacionais. Ofereça ainda a Igreja sua presença às famílias enlutadas,
ajudando-as a superarem este momento difícil, mas que é inerente à vida (cf. n.
199-258).
Entra o Documento na Educação dos Filhos
reforçando que os pais devem acompanhá-los, especialmente com base ética para
toda a vida dentro da liberdade que cabe a cada ser humano, embora com sanções
quando necessário e um realismo autêntico no modo de se viver em família com
sadio equilíbrio, favorecendo o bom desenvolvimento da criança ou adolescente,
inclusive com uma educação sexual cristã que não seja mera informação biológica
ou a defesa única do chamado “sexo seguro”, mas, sim, formação ética com escala
de valores humanos. A educação para a fé é também um dos grandes compromissos
familiares a começar, evidentemente, em casa e completar-se na comunidade (cf.
n. 259-290).
Chega-se ao acompanhamento das fragilidades
das famílias e aqui o Papa lembra que “Os Padres sinodais afirmaram que, embora
a Igreja reconheça que toda a ruptura do vínculo matrimonial ‘é contra a
vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus
filhos’” (n. 291). Há, portanto, como em um hospital de campanha, lugar para
atender a todos dentro da gradualidade pastoral. Assim, uma união civil já não
é mera convivência, a escolha da união civil, às vezes apenas se dá não por
resistência à doutrina, mas por razões ocasionais ou locais, outros optam pela
mera convivência por medo do futuro incerto (desemprego, salário não fixo
etc.). Todos devem ser acolhidos misericordiosamente pela Igreja e nela podem
ensinar pontos da doutrina aos demais, salvo se ostentam publicamente algo
contrário aos seus ensinamentos (cf. n. 297).
Devem, então, ser recatequisadas e atuar em
outras tarefas pastorais que não seja a catequese. Aos divorciados, em vários
graus e casos – há os que têm certeza de que seu primeiro matrimônio foi nulo e
está no segundo, há os que têm no segundo casamento filhos para cuidar e há
também aqueles que, há pouco se divorciaram e já estão em nova união. Cada caso
requer sabedoria dos Pastores no discernimento ponto a ponto. Via de regra,
todos hão de ser integrados à Igreja, sem que haja uma norma geral do Sínodo
para isso, pois cada caso é um caso. No entanto, os padres, sem deixar a
fidelidade à Igreja, devem ser dóceis à voz do Espírito Santo ante esses casais
com suas realidades diversas.
Ao
mesmo tempo em que importa às consciências se adaptarem às normas da Igreja, é
preciso notar que nem todas as consciências são objetivamente culpadas pelo
modo de vida que levam destoante da Igreja. Importa se guiar por normas gerais
sem se esquecer dos casos particulares, mas não fazer também dos casos
particulares junções semelhantes para daí tirar regras. Cairíamos numa
casuística sem fim (n. 304). Deve-se aplicar a caridade pastoral, capaz de não
abandonar a doutrina da Teologia Moral, mas também não se esquecer da
misericórdia gratuita do Senhor para com cada um de nós (n. 310-311). Doutrina
e misericórdia, portanto, não se opõem, mas se completam (cf. n. 291-312).
Por fim, o Papa chega a um importante
capítulo dedicado à Espiritualidade conjugal e familiar. Destaca Francisco, à
luz do Concílio Vaticano II, que a Santíssima Trindade habita não só em cada
pessoa, mas também na família, de modo que a vida familiar bem vivida é caminho
de santificação (n. 316), na oração comum e diária, ainda que breve, entre os
cônjuges e com os filhos à luz do Cristo Ressuscitado a fim de que na própria
realidade familiar resplandeça a luz pascal. Esse ponto alto da oração na vida
matrimonial é a Eucaristia, a nova e eterna aliança a lembrar ao casal o
compromisso de vida de um para com o outro até que a morte os separe. Desse
modo, uma testemunha Deus ao outro e são como que pastores da fé a seus filhos
e filhas. Todos colocados sob a proteção da Sagrada Família de Nazaré (cf. n.
313-325).
Fonte:
http://arqrio.org/formacao/detalhes/1183/amoris-laetitia